domingo, outubro 29, 2006

Butoh II

Tu, *, és a luta da borboleta para sair do casulo. És uma dança, és uma luta-dança bela e forte. És forte e teimosa. Não és como Florbela Espanca: vês o navio ao longe e sabes que poderá ir tão longe quanto ele. Ou mais. E além.

Ao dançar, sabes que o além-céu e o além-mar te aguarda. Tens a certeza.

És a certeza.

Butoh I

foram muitas mortes para você ser do jeito que é hoje.
todo o seu presente,
todo o seu eu deve sua condição (d)e existência aos seus mortos.
seus ancestrais.

carregue consigo sua legião de mortos, pois a morte é o começo,
e é a morte que o garante hoje.
cada pessoa, cada familiar,
cada sonho seu, cada sonho alheio,
cada amigo e inimigo,
cada bandeira e dogma
cada desastre e glória
cada.

não pise no palco sem carregar consigo seu exército
de rosas podres. a energia do que poderia ter sido
e não foi. por você.

(à infância do pai vendendo alface na rua
e à sua luta pro luxo meu de cada dia
à subserviência da mãe e seu eterno
sacrifício
à tia-avó carcomida de caranguejos
aos outros tantos espermatozóides
que ficaram pra trás)

não é o assassino. nunca se sinta culpado
dos mortos que o fizeram.
seja eternamente grato:
carregue-os consigo.

nunca teria noção da força de sua legião de mortos.

quinta-feira, outubro 19, 2006

Dona

Queria ser dona.
Nada imbuído de sentimentos totalitários, nem consumistas. Não sou uma colecionadora, e se fosse, não emolduraria meu objeto de desejo. Manteria ao meu lado, sempre, gastaria... e renovaria. Seria profundo, e não vil. Nem vão.
Queria ser dona do amor que ele exala.
Nada relacionado ao sentimento de propriedade, necessariamente. Seria uma garantia. Tanta paixão e tanta incerteza! Quer algo mais certo que contratos? Algo mais chato? Queria ser dona ainda assim.
Queria ser sua dona.
Não um título. Não queria ser venerada, posta em um pedestal. Queria que não fosse um colecionador. Queria deixar livre, sem medo de não voltar. Garantias, garantias!... Garantias, certificados, contratos, cláusulas, subcláusulas, entrelinhas...

Queria que não fosse um amor...

segunda-feira, outubro 16, 2006

Cadeira: pra que te quero?

quero-te porque:
tens muitos pregos
(mas não machucas)
és de madeira
(e combinas com minha saia)
podes ter almofadinhas
(embora não precises)
encaixas no canto
(e gostes mesmo é do centro)
volto a pé
(és meu alívio!)
vou embora
(mas tu nunca te moverás)
(ou...?)

sobretudo, quero-te porque
não me acharias louca ao
,estática,
deparar-te comigo falando dum
homem.


e pra que a Lí quer a cadeira?



Prece

Papai-do-céu-,-terra-e-inferno-nosso-de-cada-dia,

Que a vida não seja sempre círculos, que o mundo não seja sempre redondo
Pois eu bem sei que o fim se aproxima, e que ele é sempre um recomeço
Previsível, previsível... Infinito e anti-horário.

Que o acaso seja o quadrado necessário para o devido aprendizado
Que cada giro noventa graus à esquerda seja o tapa necessário de um ensino
Retrógrado e inesquecível, inesquecível... Horários!

Que o círculo não me dê a falsa sensação de ter aprendido e achar
Que a dor não seja iminente... Ele ainda está, escapa pela tangente
Ainda que você a tente evitar.

Que o quadrado não faça eu esquecer que eu tenho poder de parar
Pois a supresa pode abater... O amor nem sempre é algodão-doce
E que eu o tente evitar.

Que assim seja.

terça-feira, outubro 03, 2006

Histórias de Metrô II (parte II)

Eu deixei que o senhor leitor bem me julgasse, ou muito mal. Não por acaso, não posso controlar meus sentimentos enquanto o fim do espetáculos, oras, não chega ao fim! Amargura? Se for necessária pra compreender! Sadismo? Se for necessário pra não se envolver...

"Por que não pode falar? Você sabe que sempre pode falar comigo."
"Isso eu prefiro não falar"
"Eu te amo, você nem tem idéia."
"Eu também te amo."
"Então por quê? Pra quê?"
(murmúrios femininos)
"Eu te amo, não faz isso comigo."

E ela fez. E o espetáculo acabou. Pensei: teriam sido felizes? Com certeza. A conversa monótona, mas tão sofrida, não permitiria que a felicidade voltasse. A peça chega ao fim algum dia, e julguei tolo aquele homem que não entendia que a um texto de teatro não se fazia remendos, extensões, senão não seria arte. "Senão era mais uma dor... Senão não seria o amor". Era cúmplice do homem que havia sido meu motivo de chacota alguns instantes antes, quantas vezes eu não havia implorado por um ato a mais, nos mínimos ou máximos gestos? Quantas vezes eu não quis fazer remendos desleixados e estragar tudo? E eu estava ali, do lado, parada e olhando pra frente, enquanto meu pensamento só queria sacudir aquele ator e gritar em sua face abatida: a peça acabou, está ouvindo? ACABOU! Saia do palco já, saia desse metrô, agora é a sessão dos palhaços. Dos palhaços, entendeu?! Saia já!

E eu saí.

Histórias de Metrô II (parte I)

A estrutura cinza, sólida, rígida. As portas automáticas, cortinas? A caixa metálica, palco? se as cadeiras, platéia? Praticamente um teatro futurista, a arte andante de ouvir conversas alheias. O espetáculo pro qual você não pode olhar, muito pelo contrário, deve fingir que não está ali, ser indiferente à vida à sua volta, morrer um instante para assisti-la em outrem. Assim fui cativada por uma voz feminina e uma masculina, não de uma conversa curiosa ou corriqueira, e sim uma conversa tão... comum.

"Eu te amo."
"Eu também te amo."
(beijos)
(murmúrios femininos)
"Mas por quê?"
"Não sei..."
"Você não me ama?"
"Amo!"
"Então, por quê...?"
"São outras coisas, não sei... Amo sim, mas assim não dá..."
"E o que é?"
"Não posso falar."

Wylde falou através de Mr. Henry sabedoria que não poderia ser tão contemporânea, se antiga. O amor é lindo, é como um espetáculo. O problema é que as mulheres sempre insistem em um ato a mais e o amor, como um espetáculo, tem seu fim - e assim deve ser aceito. Eu disse anteriormente que a história não era curiosa, era comum, mas menti de certa forma... Por um instante achei curioso um homem estar ali, tentando compreender o fim, suplicando com os olhos que eu não via por mais um, dois atos... ou a eternidade! E o sorriso malicioso de Dorian Gray que eu não via apareceu nos cantos dos meu lábios, mas a risadinha discreta que dei por dentro eu senti, sim. Ô se senti.