segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Hipótese

"I'm gonna sit right down and write myself a letter
And make believe it came from you..."
Joseph Young and Fred Ahlertv, na voz de Madeleine Peyroux


Não me aflige,
o cabeçalho com minha letra
não me aflige.
O "meu amor" que inicia
tem sua voz doce,
o sussuro no meu ouvido direito.
Essas são as mal traçadas linhas
que você não escreveu
)por serem mal traçadas(
mas que você sentiu, sentia,
não sente mais?
Senti por você.


Há tempos sua partida, eu sei
que não tem tempo para frivolidades
na cidade luz, mas eu tenho
nessas janelas que dão para a praça,
eu tenho, eu quero a carta.
O carteiro não dá notícias,
seu Zé dos telégrafos vem às sextas
(pro café) só (pro café) sem você.


Enquanto você vive seus cafés, seus bordéis
seus moinhos vermelhos,
aqui nossas águas passadas movem meus moinhos
e meus miolos de vento
e eu sento
e escrevo pra mim mesma uma carta,
fazendo de conta que são seus garranchos
e suas hipóteses.


Veja a versão da sobre o mesmo tema.

sábado, fevereiro 16, 2008

Tateando

"Terrible idea... Don't you just love those?"
KATHERINE, em "Sob o Sol de Toscana"



Eis que um dia assisto em câmera lenta aquele estalo no brilho dos seus olhos, aquele conhecido estalo ingênuo e pueril de alguma grande revelação, o mesmo de quando descobriu que poderia recriar sua vida escrevendo contos na minha panturrilha. Abriu o sorriso mais esclarecido do mundo e soltou: "Por que não fugimos, agora?". Um suspiro e muitas respostas: porque não temos motivos, porque não temos mais o que fazer, porque é uma idéia terrível!, terrível como as outras, por que não?, fugir dessa vida adulta e dessas tardes vazias em dupla, vazias mas cheias de você e todo seu intenso fulgor, voltar pra um lugar onde seus estalos são bem-vindos e onde não somos expulsos pelos guardas no parquinho por sermos grandes demais, nosso pensamento que é grande demais pra essas fábricas acadêmicas, nosso corpo que é pequeno demais diante da força esmagadora da vida, por que fugir?, por que não?, mas que idéia terrível!


Sábios estalos nos seus olhos, caro amigo. Só seus olhos compreenderiam que, como fugitivos, seríamos um filme (aquele das nossas matinês) e como fugitivos estaríamos sentados nessas ruelas olhando para o poste e imaginando um campo de girassóis, sempre um poste, sempre um campo de girassóis, você do meu lado dizendo que ficaríamos bem, sopraria minha testa e tatearia meus ombros. Fugitivos seríamos cinema, cinema seríamos sonho, sonho seríamos campo de girassóis, campo de girassóis seríamos poste. Post.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Às Outras Vidas

Ângulos

Ele é um artista, é o que sempre digo. Nessa aura de admiração já me perdi, quantas vezes em espaços de tempo infinitesimais. Somos felizes. Somos companheiros, afinal, e há o amor. Ele sempre volta...

Quando soube da primeira, através de amigos, não me abalei tanto quanto penso que me abalaria. Há, afinal , muitas musas no Olimpo, e como as outras gostam de falar que já foram vistas, retratadas, eternizadas, tocadas, comidas! Mulheres da arte. Mulheres da vida, do fandango. Messalinas, prostitutas. Ele encontrou-me no nosso quarto com três caixas de camisinhas ao lado da cama, e perguntou o que era aquilo. Respondi que devia dar para um mês, mesmo com sua insaciabilidade e falta de jeito. E as pílulas?, respondeu. Se você pode comportar-se como um gigolô, eu ainda tenho direito à minha saúde, desrespeitei. Não há mais tanto respeito, mas ainda há amor. Não houve briga, ele não é dado a mentiras, afinal. (É um artista.)

Meus amigos sempre contemplaram os quadros que fez de mim. Foram vários. Começaram a aparecer outros, com outras mulheres, nenhuma mais de uma vez. Uma vez, um homem. Fiz bem com as camisinhas, afinal. Eu gosto de deixar ele assim, solto, pois ele é isso. Ele não se cansa, diz que dos ângulos eu tenho muito mais que 360, que sou sua obra e que um dia sobrarão ângulos pra ser sua obra ao avesso. Nas outras musas, aquelas!, todos os ângulos de uma só vez. Em mim, ângulos infinitos, palpados. Às vezes ele dizia que eu não cabia mais na tela, e me pintava a boca os seios o sacro o calcanhar, sobretudo, dizendo que tinha tudo que Aquiles tinha e o que não tinha, também. Ele via força no meu silêncio, no meu jeito de fechar os olhos com suavidade. Suaves são as noites...

Eu me pergunto se, um dia, ele terá encontrado todos os ângulos. Se eles serão menos que 360, afinal. Se, então, ele não voltará mais. A verdade é que me pergunto os ângulos que eu me recusarei a mostrar, quais a arte não revela, quais ele não merece, ele não merece. Quais farão ele ir embora. Quais farei ele ir embora. Os que sumirão num dia azul que ele me procurar num suspiro rouco, os que sumirei. Sumirei. E ele renovar-se-á. É um artista.
***
Henri Matisse
Odalisque in Red trousers, c. 1924-1925

domingo, fevereiro 03, 2008

Desaromatiza

Há dois dias eu não sinto cheiro algum. Acordo e não sinto meu hálito de manhã, é quase um não-acordar. Hálito matutino não é algo que pensasse ser essencial, mas contabilizo dois dias de não-acordar. Sem cheiro de café, e o café estava lá. Comer o pão dominical sem sorver-lhe o gosto não traz expectativas de um novo dia.

Tomo banho quando sinto que estou suada. Depois do banho, não sinto o cheiro do sabonete na toalha. O creme que eu achava que tinha um cheiro estranho não tem mais cheiro. Comprei um perfume novo semana passada. Isso é para sempre? Não tenho vontade de comer. Isso é para sempre? Acordar sem teu cheiro no travesseiro. É para sempre? Nem um trisco da canela do arroz-doce de mamãe.

Aquelas palavras que me disse, eu sei que elas tiveram um cheiro. Tenho certeza. Seriam compreensíveis, se estivesse sentindo. Fariam sentido, como soldados na chamada. Fariam sentido, as sentiria, as absorveria, cheiro de manhã de concreto molhada com arranha-céu incomodando as nuvens, cheiro de partida. Eu entenderia.