segunda-feira, abril 24, 2006

Bianca

Criava em sua cabeça, detalhadamente, sua vida de cinema. Andava de um lado para o outro, a música alta para não ouvir sua voz narrando e tornar tudo mais real. Mas isso foi antes da parede.

Ah!, com clareza via a parede mais alva e bianca de sua vida. Encontou sua testa na Bianca. Via suas mechas de cabelo negro, e veio o tombo pra cima, e estatelou-se no céu: estava dentro de si mesma; as mechas eram a moldura e o mundo era um quadro desafiador. Olhou para seus dedos longos e acompanhou suas mãos enquanto elas escorregavam na parede. Viu seus pés, seu vestido de chita, levantou-o para ver melhor suas pernas grossas, seus quadris largos, seu umbigo, seus seios pequenos - e a sentir a fria parede na sua testa. Seus dedos, suas mãos, a parede... Bianca. Ela estava dentro de si mesma, e não no espelho e nem em uma cena de seu filme. Ela: dentro de si mesma.

Testa em Bianca, olhou pra ela e falou: "estou viva", como quem conta vantagem. Sentiu Bianca em sua gélida (in)existência e colou cada centímetro do seu corpo nela. "Vê? Eu dou meu calor, eu sou viva. Você, não."

Começou a tocar o inanimado frio com firmeza, com seu corpo, com seu pensamento. Puerilmente resolveu descobrir que é viva, e se deu ao luxo de acordar mais tarde: hoje.

Se era viva, podia escolher. O sangue corre nas suas veias, nas suas vidas, era um belo exemplar da dança mais complexa de átomos que a natureza sempre presenciara. Podia escolher e começou a se arrastar no chão como uma serpente e todo o seu desejo. Podia ser humana ou não ser.

Mas era viva, e isso bastava.