segunda-feira, novembro 10, 2008

Quase amores... desamores

Uma amora não é quase uma amora, quando verde. É já uma amora, sem a voluptuosidade do fruto que comemos. O devenir, a pretensão, ainda que haja interrupções (que não haja interrupção). É o presente do subjuntivo com futuro do presente do indicativo. É nossa projeção. Amora não é amor, porque esse me dá arrepios. Não quero usar essa palavra que flutua pela existência inominada. Não quero. Quero essa salada de frutas pouquíssimo diversificada. Quero amora. Não é mais tempo de amoras.

A ponta do meu dedo indica o futuro do pretérito: desamora. Sem projeções, sem pretensões. A ponta do meu dedo indica (vamos lá!) amor. Desamor. Como não?

domingo, outubro 05, 2008

Blablablá Cósmico

Se tudo der errado, podemos nos embriagar até o chão ficar macio.
Se tudo der errado, podemos comprar um sonho com estrelas no céu, ou no lago.
Podemos passar o dia vendo filmes. Podemos passar o dia lendo livros. Podemos nos cercar de pessoas. Podemos dormir. Cinema, biblioteca, família, escola. Travesseiro.
Podemos esperar por turismo lunar. Esperar novas teorias, novas verdades, novas galáxias. Novas religiões, crendices, costumes. Podemos criar nossas próprias superstições, nossos jogos. Profanar o que há de sagrado e sacralizar o que há de profano. Se tudo isso cansar, criamos novos conceitos e nomes. Novas regras.

Só não podemos pensar que não há escapatória. O mundo é só escapatória.

quinta-feira, agosto 14, 2008

Estanque

Uma pessoa em pé, imóvel, no meio da XV de novembro, enquanto borrões passam apressados de lá pra cá, de cá pra lá. Daqui até longe, até a Sé, até o Vale. O movimento sempre borra, nos ensinou algum cineasta. Borrões, menos a intocavelmente nítida pessoa - tocada por vinte esbarrões por minuto. Esborrões. Ah, sem mais.

Onde estão aquelas palavras de três anos atrás? Elas eram tão minhas que me assustavam. Esse despotismo escrivinhador aos 16 anos fez de mim rei-sol de algum mundo onde tanta luz não ofendesse as retinas dos transeuntes. Essas palavras criaram uma via de teletransporte, antes que o próprio teletransporte fosse inventado. Pensei que ele já estaria disponível depois de três anos.

Pensar na disponibilidade do futuro é deveras curioso. Nesse meu presente de grego, futuro do pretérito, que sou? Indisponível. O futuro não está nas nossas mãos. O que está em nossas mãos são os esbarrões dos borrões. Os esborrões. Ah, sem mais!...

quarta-feira, julho 09, 2008

Solilóquios VI

(...) senti uma súbita falta da existência despretensiosa, um mundo de sutilezas e eufemismos onde as palavras nada tocam além de si próprias; existem por sua própria leveza e graça, sem dizer respeito aos sentimentos que assolam a humanidade (essa pandemia irrevogável). À palavra o que lhe é própria: a pressão nos lábios, língua nos dentes, vibrações no céu da boca, e a certeza de que elas não tocam recantos profundos do outro a não ser através de insondáveis ecos. Ao sentimento o que é sentido: sinta, e eu não falo.

sexta-feira, junho 13, 2008

Boca adentro

"Quem tem consciência para ter coragem
Quem tem a força de saber que existe"
"Primavera nos Dentes", Secos e Molhados

O sorriso, prendemos nos lábios. A primavera, seguramos nos dentes. O choro, aprisionamos na garganta.

O que seria a revolução das emoções, soltura dos lábios dentes garganta, vida jorrando de rostos aflitos, vida correndo o peito aberto, vida corrida, vida solta, língua solta, linguagem muda mais que falada. A vida que nos é dada boca adentro e a vida que grita boca afora.

Aperta a garganta, cerra os dentes, move os lábios. Grita boca afora.

domingo, junho 01, 2008

Amora

a amora antes que ela exploda
no dedo seu, no dedo meu
no céu da boca

sua boca, minha boca
no céu
lábio e sorte.

Café

"Coffee is pouring out my ears
It's the only thing they have in here
And my heart stops beating"
"Heartstopper", Emiliana Torrini

Me vê mais um maravilhoso suculento delicioso café moka forte e uma cesta de pães com geléia de damasco - uma ótima, ótima, excelente escolha! - , mas só se for nesse seu jeito assim alucinante, assim ligeiro, assim esperto, assim encafezado-mas-nunca-enfezado, assim nessa pressa dessa cidade que não tem tanta pressa nesses meus dias de férias.

- Moço, seu café é mais café desse jeitim assim que você coloca na mesa, sabia?


Daqueles textos junto com a , que me deram uma saudade danada.

segunda-feira, maio 12, 2008

Pais

Vejo lacunas no passado
- algo não estava certo.
Algo faltou, o algo é muito;
as lacunas, vastas.

Perco-me em lamentos
estando, no entanto, inteira:
nas lacunas pousaram
os dedos do improvável.

domingo, maio 11, 2008

42

"Vem comigo, vem
já tenho quase tudo que me basta
a flor do pasto, a mesa posta
minha música e teu calor
agora só me falta aprender o silêncio"
Zeca Baleiro, "O Silêncio"


Essa escrivinhadura é vontade de ouvir o som do teclado. Aceita a quietude - não aceito. Aceita a calma - não aceito. Mente quieta e dedos inquietos, é isso que escrevo sem escrever. Eu estou escrevendo um som agora que vocês não irão ouvir, mas que me alegra. O som corta o silêncio que não existe: teclado, tecidos dobrados, ferro-de-passar, corrida de fórmula um, carro na rua, piano do vizinho, sinfonia.

Quero que entendam o silêncio que não existe porque não entendo o silêncio que existe, ele não se quer explicado. Acho que o silêncio é um hiato. Talvez ele se esconda de mim, pronto p'ra dar um susto quando eu abrir a porta. Quando abrir a porta, conto a surpresa. Quando contar, talvez entenda.

Não entendo, mas desconfio que esse silêncio tenha completude. Sim entendo, é essa falta das palavras que saem. Não entendo, mas desconfio que me faça bem. Sim entendo, foram as palavras que tirou do meu ouvido com sua boca. Entenda-não-entenda, esse silêncio é a companhia que me deixa. Entenda, você nunca me deixa só.

segunda-feira, abril 28, 2008

Fast food

Chocolate I
Estômago vazio é a oficina do diabo.


Chocolate II
Coração vazio é a oficina do diabo.


quantas caixas pra saciar essa vontade
quantas caixas pra encher a tarde
quantas caixas pra encher bucho
quantas caixas pro vazio escuro

quantas?
nenhuma, nenhuma...

segunda-feira, abril 21, 2008

Ovo

O ovo na frigideira. Vou fazer uma loucura de amor.

(E penso em você assim, tão distante, mas sempre tão perto e tão junto do meu peito. Sempre, meu sempre é sempre desde aqueles dias de praça; meu sempre é sempre desde que você me deixou assim, tão dramática, tão sedenta por sua atenção, nesses palcos da vida.)

Uma pitada de sal. Vou fazer uma loucura de amor.

(E você tão longe, e esse "tão" nem é tanto, já venci distâncias maiores no espaço. Você tão longe no tempo, também já venci distâncias maiores no tempo. Minha vida é vencer distâncias, minha vida foi mudar de rumo, eu me fui, você se foi...)

Um espirro de óleo quente na mão. Vou fazer uma loucura de amor.

(E é isso, é só parar, pegar a bolsa, pegar o ônibus, pegar vergonha na cara e pegar aquela carta e ir até você assim, como meu pensamento sempre vai e o meu corpo sempre fica. Foram sempre aqueles amores de entrelinhas, pra quê?, se eu tenho esse corpo e essa alma pra lhe dizer!)

O ovo no prato. Estou com fome. Não vou fazer uma loucura de amor e por hoje é só.

domingo, abril 13, 2008

Domingo

Suspiro entre um capítulo e outro

(a moça, à janela, comendo gelatina de abacaxi enquanto a mãe faz o pãozinho ligeiro. receita da avó, conta)

voz da mãe, voz da rua
do forno, da colher batendo no fundo da xícara
ar de outono quente
silêncio de domingo surdo-mudo.

sábado, abril 05, 2008

A propósito da música II

Intermezzo in A
Brahms
(a Alexei Lisounenko)


O pianista toca o piano como a uma mulher. As teclas são curvas e macias, a pele é marfim. Começa pelos tornozelos, suave, e violento à cintura. Amortece nos ombros, com um beijo e um amor calmo. A mulher acorda e lhe sorri "preciso ir", e as teclas fervilham "não vá", e ela se veste às pressas. Desce as escadas como a fúria dos dedos desce ao piano - mas ela esqueceu a echarpe. O perfume apazigua a música e corre, corre o músico à janela esperando que ela volte para buscá-la. Atravessa a rua, e vira, "ela voltará!". Não volta, apenas sorri um "eu te amo" e segue seu caminho, com os aplausos.



Divertimentos
Mozart
(a Maria Inês Toledo Piza e Bernardo Toledo Piza)


Sopram os divertimentos como se pulassem em poças d'água, esperando a bronca da mãe, ao voltar para casa.



Polichinelo
Rachmaninoff
(a Alexei Lisounenko)


a cada nota, o pianista
mais um centímetro adentra o piano
a cada som, o piano
enfeitiça os dedos do pianista

terça-feira, abril 01, 2008

Solilóquios V

Futuro
"Some of the times the future comes right round to haunt me
Some of the times the future comes round just to see
That all is as it could be, like if it's to remind me
We've got to wait and see"
Beth Orton


Passado

Nosso passado é uma arma poderosa. Pesada como bola de canhão, sempre apontada a um presente qualquer. Nosso passado esmaga qualquer presente, se deixarmos. Nosso passado é bola de canhão desde que nascemos, pois ele é o peso de toda uma vida. Se você tem dezenove anos, você conseguirá esmagar seu presente tanto quanto alguém de quarenta e dois. Quisera eu dizer que a primeira bola tem dezenove quilos e, a segunda, quarenta e dois. Não sou besta, sei que não funciona assim. Nosso passado é mais grave que a métrica.

O passado dos outros?, ah!, o passado dos outros é armadilha. No passado dos outros você cai, e não tem lá muita escapatória. O passado dos outros é tão traquinas que é capaz de esmagar, mesmo sendo uma rede suspensória. É capaz de selecionar e, principalmente, de excluir - tirar do caminho, puf. Talvez o pior do passado dos outros é que são eles quem escolhe o lugar da armadilha, e não você. Será?

Seja ou esteja, agüente, e siga firme. O passado eu passo.


Presente

O presente passou. De novo. E de novo. E está sempre aí, com seu laço de fita vermelha.

segunda-feira, março 31, 2008

Poema do concreto desarmado

leve como pluma
pluma leve como ar

leva a pluma
deixa o ar
deixa o corpo
leva a dança

deixa tu
leva eu
leva eu
deixa tu

segunda-feira, março 24, 2008

Espacial

P'ra você não ter espaço.

Ler todos os livros que pude
vestir no corpo a rota roupa
poupar o corpo do parco alimento
esvair da mente sonhos a realizar
desfilar garranchos n'alta madrugada
gritar seu nome, arranhar suas costas

p'ra não ter espaço para você.


Vincent van Gogh

Avenue of Poplars at Sunset, 1884

Autobiografia

Isabella tem q... anos. Seu nome possui um "L" a mais por causa da numerologia e essa ciência lhe é oculta. Possui especial simpatia por freiras, mas não gosta de taxistas. Dorme com sua cadelinha Fiona, a quem deu uma coleira com "Fifi" gravado em seu aniversário de dez anos caninos. Toma sorvete em dias frios. Anda em casa só de calcinha nos dias quentes. Não sabe o que é um orgasmo.

Mas meu nome é Luísa.

sexta-feira, março 21, 2008

Eidetismo IV

Infância

E veio a colônia de férias. A única certeza que eu tinha sentada no fundo daquele ônibus colorido era de que eu não estava entendendo absolutamente nada do que estava acontecendo, que talvez aquilo tudo fosse a extensão de um sonho sem tato ou algo assim. Às vezes eu jogava um jogo e jogavam a bola em mim e eu jogava neles todos os palavrões que eu (ainda) não tinha aprendido, e jogava lágrimas ao léu perguntando a mim mesma o que eu deveria ter feito pra minha mãe ter me mandado pro limbo. Mas sempre chegava a hora da piscina. E melhor, a hora de escovar os dentes. Só aí poderia trocar Colgate por Tandy de tutti-frutti, aquele que tinha um coelho desenhado no tubo - e gosto de infância.

sexta-feira, março 07, 2008

Brama Sole

vento no mato
pé na grama
grama-sol, grama-seca
vento grilo.

um debate, um latido
um samba.
uma revolução!
e sua voz no meu ouvido...

segunda-feira, fevereiro 18, 2008

Hipótese

"I'm gonna sit right down and write myself a letter
And make believe it came from you..."
Joseph Young and Fred Ahlertv, na voz de Madeleine Peyroux


Não me aflige,
o cabeçalho com minha letra
não me aflige.
O "meu amor" que inicia
tem sua voz doce,
o sussuro no meu ouvido direito.
Essas são as mal traçadas linhas
que você não escreveu
)por serem mal traçadas(
mas que você sentiu, sentia,
não sente mais?
Senti por você.


Há tempos sua partida, eu sei
que não tem tempo para frivolidades
na cidade luz, mas eu tenho
nessas janelas que dão para a praça,
eu tenho, eu quero a carta.
O carteiro não dá notícias,
seu Zé dos telégrafos vem às sextas
(pro café) só (pro café) sem você.


Enquanto você vive seus cafés, seus bordéis
seus moinhos vermelhos,
aqui nossas águas passadas movem meus moinhos
e meus miolos de vento
e eu sento
e escrevo pra mim mesma uma carta,
fazendo de conta que são seus garranchos
e suas hipóteses.


Veja a versão da sobre o mesmo tema.

sábado, fevereiro 16, 2008

Tateando

"Terrible idea... Don't you just love those?"
KATHERINE, em "Sob o Sol de Toscana"



Eis que um dia assisto em câmera lenta aquele estalo no brilho dos seus olhos, aquele conhecido estalo ingênuo e pueril de alguma grande revelação, o mesmo de quando descobriu que poderia recriar sua vida escrevendo contos na minha panturrilha. Abriu o sorriso mais esclarecido do mundo e soltou: "Por que não fugimos, agora?". Um suspiro e muitas respostas: porque não temos motivos, porque não temos mais o que fazer, porque é uma idéia terrível!, terrível como as outras, por que não?, fugir dessa vida adulta e dessas tardes vazias em dupla, vazias mas cheias de você e todo seu intenso fulgor, voltar pra um lugar onde seus estalos são bem-vindos e onde não somos expulsos pelos guardas no parquinho por sermos grandes demais, nosso pensamento que é grande demais pra essas fábricas acadêmicas, nosso corpo que é pequeno demais diante da força esmagadora da vida, por que fugir?, por que não?, mas que idéia terrível!


Sábios estalos nos seus olhos, caro amigo. Só seus olhos compreenderiam que, como fugitivos, seríamos um filme (aquele das nossas matinês) e como fugitivos estaríamos sentados nessas ruelas olhando para o poste e imaginando um campo de girassóis, sempre um poste, sempre um campo de girassóis, você do meu lado dizendo que ficaríamos bem, sopraria minha testa e tatearia meus ombros. Fugitivos seríamos cinema, cinema seríamos sonho, sonho seríamos campo de girassóis, campo de girassóis seríamos poste. Post.

sexta-feira, fevereiro 08, 2008

Às Outras Vidas

Ângulos

Ele é um artista, é o que sempre digo. Nessa aura de admiração já me perdi, quantas vezes em espaços de tempo infinitesimais. Somos felizes. Somos companheiros, afinal, e há o amor. Ele sempre volta...

Quando soube da primeira, através de amigos, não me abalei tanto quanto penso que me abalaria. Há, afinal , muitas musas no Olimpo, e como as outras gostam de falar que já foram vistas, retratadas, eternizadas, tocadas, comidas! Mulheres da arte. Mulheres da vida, do fandango. Messalinas, prostitutas. Ele encontrou-me no nosso quarto com três caixas de camisinhas ao lado da cama, e perguntou o que era aquilo. Respondi que devia dar para um mês, mesmo com sua insaciabilidade e falta de jeito. E as pílulas?, respondeu. Se você pode comportar-se como um gigolô, eu ainda tenho direito à minha saúde, desrespeitei. Não há mais tanto respeito, mas ainda há amor. Não houve briga, ele não é dado a mentiras, afinal. (É um artista.)

Meus amigos sempre contemplaram os quadros que fez de mim. Foram vários. Começaram a aparecer outros, com outras mulheres, nenhuma mais de uma vez. Uma vez, um homem. Fiz bem com as camisinhas, afinal. Eu gosto de deixar ele assim, solto, pois ele é isso. Ele não se cansa, diz que dos ângulos eu tenho muito mais que 360, que sou sua obra e que um dia sobrarão ângulos pra ser sua obra ao avesso. Nas outras musas, aquelas!, todos os ângulos de uma só vez. Em mim, ângulos infinitos, palpados. Às vezes ele dizia que eu não cabia mais na tela, e me pintava a boca os seios o sacro o calcanhar, sobretudo, dizendo que tinha tudo que Aquiles tinha e o que não tinha, também. Ele via força no meu silêncio, no meu jeito de fechar os olhos com suavidade. Suaves são as noites...

Eu me pergunto se, um dia, ele terá encontrado todos os ângulos. Se eles serão menos que 360, afinal. Se, então, ele não voltará mais. A verdade é que me pergunto os ângulos que eu me recusarei a mostrar, quais a arte não revela, quais ele não merece, ele não merece. Quais farão ele ir embora. Quais farei ele ir embora. Os que sumirão num dia azul que ele me procurar num suspiro rouco, os que sumirei. Sumirei. E ele renovar-se-á. É um artista.
***
Henri Matisse
Odalisque in Red trousers, c. 1924-1925

domingo, fevereiro 03, 2008

Desaromatiza

Há dois dias eu não sinto cheiro algum. Acordo e não sinto meu hálito de manhã, é quase um não-acordar. Hálito matutino não é algo que pensasse ser essencial, mas contabilizo dois dias de não-acordar. Sem cheiro de café, e o café estava lá. Comer o pão dominical sem sorver-lhe o gosto não traz expectativas de um novo dia.

Tomo banho quando sinto que estou suada. Depois do banho, não sinto o cheiro do sabonete na toalha. O creme que eu achava que tinha um cheiro estranho não tem mais cheiro. Comprei um perfume novo semana passada. Isso é para sempre? Não tenho vontade de comer. Isso é para sempre? Acordar sem teu cheiro no travesseiro. É para sempre? Nem um trisco da canela do arroz-doce de mamãe.

Aquelas palavras que me disse, eu sei que elas tiveram um cheiro. Tenho certeza. Seriam compreensíveis, se estivesse sentindo. Fariam sentido, como soldados na chamada. Fariam sentido, as sentiria, as absorveria, cheiro de manhã de concreto molhada com arranha-céu incomodando as nuvens, cheiro de partida. Eu entenderia.

terça-feira, janeiro 15, 2008

Mapas

Pra começar, você vai precisar de um mapa.
Quando começarmos, pensaremos que é possível atravessar o Oceano Pacífico a nado. Bom, não é, mas não faz mal começar sonhando. Pensar grande é o começo de tudo, tudo que é grandioso. Depois você vai descobrir que existem outros mapas, pequenos mapas, para coisas talvez maiores que o mundo... O mapa para o coração do rapaz que você segue com os olhos há um mês, o mapa para a compreensão dos seus pais, o mapa para aquela faculdade ou aquele emprego, o mapa do metrô. Estudá-los-á tanto que talvez os decore. Talvez pense que seria mais fácil cruzar o Pacífico a nado.
Você estará sozinho. Infelizmente não é possível contar com a existência das outras pessoas tanto quanto se conta com a sua própria. É claro que terá a família, e seus amigos... Eles farão você acreditar que não está sozinho embora, acredite, você esteja. Eles o convencerão disso quando não existir mais uma viv'alma que lhe cruze a vista. Você acreditará, e acreditar é tudo. Agradeça aos seus amigos por fazê-lo acreditar de vez em quando.
É importante também sempre andar para frente. Só volte quando estritamente necessário, quando precisar de informações. O mundo é meio grande demais pra você não sair do mesmo lugar enquanto o tempo passa! Se a insegurança o fizer tropeçar, mergulhe no lago mais próximo, e siga a viagem. A insegurança é outra coisa que deve ser esquecida, embora sempre esteja lá.

Tenha paciência e perseverança. A caminhada prosseguirá melhor assim. E o mais importante: esqueça o maldito filtro solar. Leve uma toalha e um mapa, e boa viagem.

segunda-feira, janeiro 14, 2008

Round Final

Eu estava aqui a pensar nessa minha longa espera, sabe, a espera que é humilde em si mas que guarda todas as arrogâncias e pretensões, eu espero o dia em que você me cause inveja, jovem, inveja, não preciso disso para sentir-me viva, só não quero sentir-me competindo com um alguém que não parece ser digna de tal competição, alguém que debate-se com seu mísero talento para fazer algo parcamente tolerável, alguém que sempre que chamo ao ringue me mostra uma cara já deformada das batalhas, alguém em quem eu teria dó até de cuspir.

Estou lutando sozinha. Eu a invejo.

quinta-feira, janeiro 10, 2008

Sex and the City

Computador.
"Às sete, na Augusta?"
Que roupa?, vestido, o vermelho ou o preto?, o preto, sim, será que ele ainda me serve, comi tanto nessas festas e afins e ah, serviu, droga!, que preguiça de me depilar, que calor pra usar meia-calça, outra roupa, huuum, que roupa?, calça jeans... "carro-bomba deixa um morto em Bagdá; Polícia iraquiana encontra mais três corpos" ... calça jeans agora é chic, esse sapato?, salto alto demais, que-se-foda-vou-de-allstar, eis então que meu allstar branco é agora marrom..., alguma maquiagem (mas e se ele não me reconhecer depois), e eu, tenho me reconhecido?, sem-crises-existenciais-agora-você-tem-sono-demais-pra-isso, queria tanto usar o vestido, talvez minhas pernas não estejam tão ruins e AH!
Computador.
"Acho que não vou mais, Pedrinho."
"O que aconteceu?"
"Uma fatalidade."

quarta-feira, janeiro 02, 2008

O Amor dos Tempos do Cólera

Descia as escadas do cinema, com dificuldade. Os passos incertos e os braços flácidos mostravam a avançada idade. Sob o coque asseado, branco e lustroso como os lençóis de cetim da sua lua-de-mel, estava sua nuca lisa. Lisa, aveludada, com algumas sardas e incrivelmente jovem. Pergunto-me quantos amantes não quereriam, agora, contar todas as sardas da sua nuca e beijá-la com fervor adolescente e paciência experiente. Um punhado. Talvez um deles a admirasse há anos, admiração que o tempo não apagou, e sonha há anos com sua nuca. Talvez nunca tenha dito a ela pois pensa que é demência não esquecer uma nuca. Com certeza teremos algo em nós que nunca será esquecido, algo que carregue um frenesi adolescente para sempre.

E é nauseante, no frenesi adolescente de hoje, perceber que não nos falta tempo para amar.