quinta-feira, dezembro 22, 2005

Ela (ou Em Copo d'Água)

Tentava dormir. Relembrava o dia como se fosse uma canção de ninar. Como acontecera algumas vezes, Ela parou em um momento e o reprisava mentalmente, como quem procura os sete arros. Como acontecera algumas vezes, os erros pareciam ir muito além de sete. Como acontecera algumas vezes, ela começou a chorar. A cena: mesa do café, Ela, pai, madrasta, seu pequeno irmão e a babá do mesmo.

Como era difícil fazer-se ouvir!, aproveitou o momento de silêncio para dividir. "Hoje estava olhando as matérias do curso de Comunicaçaõ Social da USP, elas parecem tão legais e..." fora interrompida pelo silêncio. Seu pai encarando o nada, a madrasta fitando-a fuzilante brevemente, a babá tentando entreter o pequeno que se recusava a comer, a madrasta desviando o olhar pra fazer a ele uma graça e o pai encarando o nada. Eles voltaram a conversar entre si, ficando Ela agora sós com sua própria voz ecoando torturante na sua cabeça. O pai percebia sua voz em alguns assuntos médicos e dificuldades na escola, parecia surdo para todo o resto. Sua madrasta parecia não ouvir nunca, mas quando ouvia era como se a voz d'Ela fosse apenas um guincho incômodo.

Lembrava disso, da agonia talvez desnecessária, e o choro tornava a sua respiração difícil. Sentou-se na cama abraçada ao travesseiro e fitou a penumbra incolor do seu quarto, e logo depois fixou seu olhar em uma feixe de luz que desbravava as costinas da janela.

Perceber que a cena era o enésimo remake de recorrentes adaptações de um roteiro original que ela queria rasgar com os dentes, jogar para o alto e queimar depois, como em um ritual macabro de quem procura liberdade. Sim, agora estava claro: amava seus amigos, seus amores, seu amor, mais que tudo. Entretanto, não é possível ter um lar quando se é anônima nele. Não é póssível viver sem um lar, não mais. Não é possível ficar. E era por isso que Ela partiria em breve.

Ainda encarando o feixe de luz, os olhos molhados e os lábios quentes, Ela sorriu. A cena era simples. Conseguir entender a fazia feliz.

Ligou o abajour e em seu caderninho esquecido, na página ao lado da lista de prós e contras do moço da memória, escreveu com sua voracidade habitual:
"Tentava dormir. Relembrava o dia como se fosse uma canção de ninar. Como acontecera..."

Autobiografia

(Não que minha vida seja digna de nota, ou que exista alguma lei metafísica de que as pessoas devessem realmente prestar atenção em mim; não quero parecer presunçosa. Talvez por isso queira falar hoje sobre como seria minha autobiografia, mas não de fato contar minha comum e tão facilmente reconhecível estória.

Primeiro o título, que em nada seria heróico: "Zuzu", o primeiro nome ao qual atendi, mas ao qual não atendo mais - não insistam!. Nada como uma lembrança para começar.)

O mais importante a dizer sobre a minha autobiografia é que seria repleta de coisas banais. Pois são as coisas banais que me fazem rir ou chorar - o que talvez lhes dê certa importância e distinção - , e que me fazem de pedra no que se julga realmente importante. E é essa dicotomia que me faz fragilmente forte.