Tentava dormir. Relembrava o dia como se fosse uma canção de ninar. Como acontecera algumas vezes, Ela parou em um momento e o reprisava mentalmente, como quem procura os sete arros. Como acontecera algumas vezes, os erros pareciam ir muito além de sete. Como acontecera algumas vezes, ela começou a chorar. A cena: mesa do café, Ela, pai, madrasta, seu pequeno irmão e a babá do mesmo.
Como era difícil fazer-se ouvir!, aproveitou o momento de silêncio para dividir. "Hoje estava olhando as matérias do curso de Comunicaçaõ Social da USP, elas parecem tão legais e..." fora interrompida pelo silêncio. Seu pai encarando o nada, a madrasta fitando-a fuzilante brevemente, a babá tentando entreter o pequeno que se recusava a comer, a madrasta desviando o olhar pra fazer a ele uma graça e o pai encarando o nada. Eles voltaram a conversar entre si, ficando Ela agora sós com sua própria voz ecoando torturante na sua cabeça. O pai percebia sua voz em alguns assuntos médicos e dificuldades na escola, parecia surdo para todo o resto. Sua madrasta parecia não ouvir nunca, mas quando ouvia era como se a voz d'Ela fosse apenas um guincho incômodo.
Lembrava disso, da agonia talvez desnecessária, e o choro tornava a sua respiração difícil. Sentou-se na cama abraçada ao travesseiro e fitou a penumbra incolor do seu quarto, e logo depois fixou seu olhar em uma feixe de luz que desbravava as costinas da janela.
Perceber que a cena era o enésimo remake de recorrentes adaptações de um roteiro original que ela queria rasgar com os dentes, jogar para o alto e queimar depois, como em um ritual macabro de quem procura liberdade. Sim, agora estava claro: amava seus amigos, seus amores, seu amor, mais que tudo. Entretanto, não é possível ter um lar quando se é anônima nele. Não é póssível viver sem um lar, não mais. Não é possível ficar. E era por isso que Ela partiria em breve.
Ainda encarando o feixe de luz, os olhos molhados e os lábios quentes, Ela sorriu. A cena era simples. Conseguir entender a fazia feliz.
Ligou o abajour e em seu caderninho esquecido, na página ao lado da lista de prós e contras do moço da memória, escreveu com sua voracidade habitual:
"Tentava dormir. Relembrava o dia como se fosse uma canção de ninar. Como acontecera..."
quinta-feira, dezembro 22, 2005
Autobiografia
(Não que minha vida seja digna de nota, ou que exista alguma lei metafísica de que as pessoas devessem realmente prestar atenção em mim; não quero parecer presunçosa. Talvez por isso queira falar hoje sobre como seria minha autobiografia, mas não de fato contar minha comum e tão facilmente reconhecível estória.
Primeiro o título, que em nada seria heróico: "Zuzu", o primeiro nome ao qual atendi, mas ao qual não atendo mais - não insistam!. Nada como uma lembrança para começar.)
O mais importante a dizer sobre a minha autobiografia é que seria repleta de coisas banais. Pois são as coisas banais que me fazem rir ou chorar - o que talvez lhes dê certa importância e distinção - , e que me fazem de pedra no que se julga realmente importante. E é essa dicotomia que me faz fragilmente forte.
Primeiro o título, que em nada seria heróico: "Zuzu", o primeiro nome ao qual atendi, mas ao qual não atendo mais - não insistam!. Nada como uma lembrança para começar.)
O mais importante a dizer sobre a minha autobiografia é que seria repleta de coisas banais. Pois são as coisas banais que me fazem rir ou chorar - o que talvez lhes dê certa importância e distinção - , e que me fazem de pedra no que se julga realmente importante. E é essa dicotomia que me faz fragilmente forte.
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